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Mensagens

Sepultados sob a ignorância de nós mesmos

Naquele momento, no alto do Monte Morco, tudo era nítido e luminoso; no entanto, a escuridão daquela noite mantinha-se estagnada no fundo da alma de Don Fabrizio. O seu mal-estar assumia formas penosas e vagas; não era provocado pelas grandes questões que o Plebiscito começara a resolver: os grandes interesses do Reino (das Duas Sicílias), os interesses da sua classe, os seus privilégios saíam de todos aqueles acontecimentos um tanto ou quanto amachucados mas preservados no essencial; dadas as circunstâncias não seria legítimo pedir mais; o seu mal-estar não era de natureza política e devia ter raízes mais profundas, enterradas num daqueles pretextos a que chamamos irracionais porque estão sepultados sob montões de ignorância de nós mesmos.  O Leopardo [Il Gattopardo]  Página 88  G. Tomasi de Lampedusa  1958 dC  Editora: Visão
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Uma defesa da solidão

Vivemos numa sociedade em que a solidão se tornou numa das feridas mais dolorosas. A competição e a rivalidade que impregnam as nossas vidas, desde o nascimento, criaram em nós uma percepção muito acentuada do nosso isolamento. Esta percepção deixou, por sua vez, muitas pessoas com uma ansiedade exacerbada e um desejo imenso de experimentar a unidade e a comunhão. Levou também as pessoas a inquirir de novo como é que o amor, a amizade e a irmandade as pode libertar do isolamento e proporcionar-lhes um sentido de intimidade e de pertença. Tudo à nossa volta nos fala de como os habitantes do mundo ocidental tentam escapar a essa solidão. A psicoterapia, os diversos institutos que proporcionam experiências de grupo com técnicas de comunicação verbais e não-verbais, cursos de Verão e conferências patrocinadas por intelectuais, educadores e «curiosos» onde as pessoas podem partilhar problemas comuns, inúmeras experiências que procuram criar liturgias íntimas, onde a paz não é apenas anuncia

O homem nuclear

O homem nuclear é aquele que compreende que os seus poderes criativos contêm o potencial da autodestruição. Ele apercebe-se de que, nesta era nuclear, vastos e novos complexos industriais permitem ao homem produzir numa hora o que outrora levava anos a produzir, mas compreende igualmente que estas mesma indústrias perturbaram o equilíbrio ecológico e, através da poluição atmosférica e sonora, contaminaram o seu próprio ambiente. O homem nuclear conduz automóveis, ouve telefonia e vê televisão, mas perdeu a capacidade de compreender o funcionamento dos instrumentos de que se serve. Vê à sua volta uma tal variedade e abundância de objectos úteis que a escassez já não lhe motiva a vida, mas ele anda simultâneamente às apalpadelas à procura de uma direcção e em busca de sentido e de objectivo. Durante este processo, ele sofre do conhecimento inevitável de que o seu tempo é o tempo em que se tornou possível ao Homem destruir não só a vida mas também a possibilidade de renascimento, não só

Um dia ideal para fazer um exame interior

Um dia ideal para fazer um exame interior: esta claridade fria que o sal projecta, como uma sentença sem indulgência, sobre as criaturas, entra em mim pelos olhos; estou iluminado, por dentro, por uma luz depauperante. Bastar-me-ia um quarto de hora, tenha a certeza, para chegar ao asco supremo por mim próprio. Muito obrigado, não estou interessado.  A Náusea [La Nausée]  Página 30  Jean-Paul Sartre  1938 dC  Editora: Livros do Brasil

A existência ao acordar num dia de chuva

E por fim, sobre a escuridão dos telhados lustrosos, a luz fria da manhã tépida raia como um suplício do Apocalipse. É outra vez a noite imensa da claridade que aumenta. E outra vez o horror de sempre — o dia, a vida, a utilidade fictícia, a atividade sem remédio. E outra vez a minha personalidade física, visível, social, transmissível por palavras que não dizem nada, usável pelos gestos dos outros e pela consciência alheia. Sou eu outra vez, tal qual não sou. Com o princípio da luz de trevas que enche de dúvidas cinzentas as frinchas das portas das janelas — tão longe de herméticas, meu Deus! -, vou sentindo que não poderei guardar mais o meu refúgio de estar deitado, de não estar dormindo mas de o poder estar, de ir sonhando, sem saber que há verdade nem realidade, entre um calor fresco de roupas limpas e um desconhecimento, salvo de conforto, da existência do meu corpo. Vou sentindo fugir-me a inconsciência feliz com que estou gozando da minha consciência, o modorrar de animal com q

Possuído pela estupidez

  The power of the one needs the stupidity of the other. The process at work here is not that particular human capacities, for instance, the intellect, suddenly atrophy or fail. Instead, it seems that under the overwhelming impact of rising power, humans are deprived of their inner independence, and, more or less consciously, give up establishing an autonomous position toward the emerging circumstances. The fact that the stupid person is often stubborn must not blind us to the fact that he is not independent. In conversation with him, one virtually feels that one is dealing not at all with a person, but with slogans, catchwords and the like that have taken possession of him. He is under a spell, blinded, misused, and abused in his very being. Having thus become a mindless tool, the stupid person will also be capable of any evil and at the same time incapable of seeing that it is evil. This is where the danger of diabolical misuse lurks, for it is this that can once and for all destroy

Aristocracia do povo ou aristocracia da aristocracia: uma problemática para o humor

Nenhum território se aproxima mais da nossa condição do que a melancólica América. Só ela nos pode esclarecer um pouco sobre o nosso futuro. Lá, não se vê um déspota como o cardeal de Fleury que, segundo creio, reinava em França no tempo do senhor de Brosses. Lá, a déspota é a mediocridade grosseira, que exige ser adulada. Em Nova Iorque, La Fontaine não se atreveria a dizer:  Como odeio o ignorante vulgo!  Pela minha parte, gostava que o vulgo fosse feliz. A felicidade é como o calor, que passa dos lugares mais baixos para os mais altos. No entanto, não gostaria, por nada deste mundo, de viver com o vulgo e ainda menos ser obrigado a adulá-lo. Em Nova Iorque e em Filadélfia, não é ao senhor barão Poitou, que tem um distinto palacete na Chaussée-d’Antin, oitenta mil libras de rendimento e que, para mais, é assinante da Revue de Paris, que temos de agradar. Em Nova Iorque, é ao sapateiro e ao seu amigo tintureiro, que tem dez filhos, que temos de agradar. E, para cúmulo do ridículo, o

Na sua mente formavam-se palavras

A questão é que tenho que continuar contigo - disse ele, sem qualquer nota de amargura nas palavras; nem ele a sentia. Houve um breve silêncio antes de ela replicar: Não me conformo com estas renúncias. Estás a abandoná-la por uma questão de escrúpulos. É uma parvoíce. Desta vez passou um minuto ou mais sem que trocassem quaisquer palavras. Dixon sentiu que o seu papel naquela conversa, tal como no conjunto das suas relações com Margaret, tinha sido dirigido por uma coisa que era exterior a ele mas que também não se encontrava directamente presente nela. Sentiu mais do que nunca que o que dizia e fazia não provinha da sua própria vontade, nem sequer do tédio, mas de uma espécie de sentido de situação. E de onde era oriundo esse sentido se, como parecia, não participava da sua geração? Com inquietude, apercebeu-se de que na sua mente se formavam palavras. Eram palavras que, como não podia pensar noutras, rapidamente se ouviria a pronunciar. Levantou-se, pensando que poderia aproximar-

Monumentos à economia

Para afastar aquele pensamento, abriu o armário que continha os seus acessórios e máquinas de fumador - monumentos, alguns deles dispendiosos, à economia. Tanto quanto se recordava, nunca tinha conseguido fumar tanto como desejava. Aquele arsenal de dispositivos tinha sido erguido à medida que ia experimentando cada nova forma que encontrava de tentar fumar tanto como queria: o seco maço de tabaco barato para fazer cigarros, o cachimbo de cerejeira, o pacote vermelho de mortalhas, o pacote de limpadores de cachimbo, a máquina de cigarros de couro, a ferramenta quadripartida para os cachimbos, o esmigalhado pacote de tabaco barato para cachimbo, o pacote de filtros de lã e algodão (novo processo), a máquina de cigarros niquelada, o cachimbo de barro, o cachimbo de roseira, o pacote azul de mortalhas, o pacote de mistura de ervas para fumar (com a garantia de não ter nicotina e outras substâncias nocivas. Porquê?), a lata enferrujada de tabaco caro para cachimbo, o pacote de filtros de g

Um primeiro encontro com a beleza

And of course beauty: the beauty that was for him the link between the ships and the woods and the poems. He remembered as though it were but a few days ago that winter night, himself too young even to know the meaning of beauty, when he had looked up at a delicate tracery of bare black branches against the icy glittering stars: suddenly something that was, all at once, pain and longing and adoring had welled up in him, almost choking him. He had wanted to tell someone, but he had no words, inarticulate in the pain and the glory. It was long afterwards that he realised that it had been his first aesthetic experience. That nameless something that had stopped his heart was Beauty. Even now, for him, “bare branches against the stars” was a synonym for beauty.  A Severe Mercy  Página 7  Sheldon Vanauken  1977 dC  Editora: Harper & Row

Entrincheirados pelo pior do que os outros dizem

In any fairly large and talkative community such as a university, there is always the danger that those who think alike should gravitate together into 'coteries' where they will henceforth encounter opposition only in the emasculated form of rumor that the outsiders say thus and thus. The absent are easily refuted, complacent dogmatism thrives, and differences of opinion are embittered by group hostility. Each group hears not the best, but the worst, that the other groups can say. C. S. Lewis

Crucificar Jesus com actualizações

O evangelho pode ser “modernizado”? Será factível esperar que a igreja aplique a fé histórica ao cenário contemporâneo, a Palavra ao mundo, sem trair a primeira nem alienar o segundo? Será que o cristianismo pode conservar autêntica a sua identidade e ao mesmo tempo demonstrar a sua relevância, ou é preciso sacrificar um deles em detrimento do outro? Seremos obrigados a escolher entre voltar ao passado e fazer do presente um amuleto, entre recitar velhas verdades que são antiquadas e inventar novas ideias que são espúrias? Dentre estes dois, talvez o maior perigo seja o de que a igreja tente reformular a fé de forma a solapar sua integridade, tornando-a irreconhecível diante dos seus arautos originais. Eu proponho que agora nos concentremos neste problema; o resto do livro dirige-se, de diferentes maneiras, ao problema complementar da relevância.  Em 1937, o académico Harvard Henry J. Cadbury publicou o seu livro O Perigo de Modernizar Jesus. Ele admitiu que o propósito - aliás, louváv

O processo de fabricar e prestar culto a um ídolo

Todos os artífices de imagens de escultura são vaidade, e as suas coisas mais desejáveis são de nenhum préstimo; e suas mesmas testemunhas nada veem, nem entendem, para que eles sejam confundidos. Quem forma um deus e funde uma imagem de escultura, que é de nenhum préstimo? Eis que todos os seus seguidores ficarão confundidos, pois os mesmos artífices são dentre os homens; ajuntem-se todos e levantem-se; assombrar-se-ão e serão juntamente confundidos.  O ferreiro faz o machado, e trabalha nas brasas, e o forma com martelos, e o lavra com a força do seu braço; ele tem fome, e a sua força falta, e não bebe água, e desfalece. O carpinteiro estende a régua, e emprega a almagra, e aplaina com o cepilho, e marca com o compasso, e faz o seu deus à semelhança de um homem, segundo a forma de um homem, para ficar em casa.  Tomou para si cedros, ou toma um cipreste, ou um carvalho e esforça-se contra as árvores do bosque; planta um olmeiro, e a chuva o faz crescer. Então, servirão ao homem para q

Tudo sujeito às leis fatais

Retendo, da ciência, somente aquele seu preceito central, de que tudo é sujeito às leis fatais, contra as quais se não reage independentemente, porque reagir é elas terem feito que reagíssemos; e verificando como esse preceito se ajusta ao outro, mais antigo, da divina fatalidade das coisas, abdicamos do esforço como os débeis do entretimento dos atletas, e curvamo-nos sobre o livro das sensações com um grande escrúpulo de erudição sentida. Não tomando nada a sério, nem considerando que nos fosse dada, por certa, outra realidade que não as nossas sensações, nelas nos abrigamos, e a elas exploramos como a grandes países desconhecidos. E, se nos empregamos assiduamente, não só na contemplação estética mas também na expressão dos seus modos e resultados, é que a prosa ou o verso que escrevemos, destituídos de vontade de querer convencer o alheio entendimento ou mover a alheia vontade, é apenas como o falar alto de quem lê, feito para dar plena objetividade ao prazer subjetivo da leitura. 

Veio para ver, mas não comprar

During those days Fingerbone was strangely transformed. If one should be shown odd fragments arranged on a silver tray and be told, “That is a splinter from the True Cross, and that is a nail paring dropped by Barabbas, and that is a bit of lint from under the bed where Pilate’s wife dreamed her dream,” the very ordinariness of the things would recommend them. Every spirit passing through the world fingers the tangible and mars the mutable, and finally has come to look and not to buy. So shoes are worn and hassocks are sat upon and finally everything is left where it was and the spirit passes on, just as the wind in the orchard picks up the leaves from the ground as if there were no other pleasure in the world but brown leaves, as if it would deck, clothe, flesh itself in flourishes of dusty brown apple leaves, and then drops them all in a heap at the side of the house and goes on. So Fingerbone, or such relics of it as showed above the mirroring waters, seemed fragments of the quotidi
They started out as perfectly good pictures of the scene in the park. But the more Hemmings blew them up, the less they really revealed. Finally he reached full magnification, and they were nothing more than masses of dots – just like the unsatisfactory paintings of his artist friend, who lived across the alley.  I'm not sure it really matters whether there was a murder or not, but when I'm closely pressed by players of the Blow-Up Game, I suggest that Hemmings' camera photographed a murder and Antonioni's did not, even though both were aimed at the same place in space and time. This disparity may be a subtle pun, built right into the film. Is Antonioni trying to tell us that the more we blow up "Blow-Up," the less we will be able to learn about it?  If that is so, then what conclusion can we draw? My guess, a pretty obvious one, is that Antonioni is trying to demonstrate the unreality of modern life. We depend to a fantastic degree upon the media to tell us w

Preciso de ver o mundo através de metáforas

Personally, I need to see the world through metaphors, symbols and images. It is through images that I can engage meaningfully with the world. The personalising of this invisible notion of the spirit is necessary for me to fully understand it. The Red Hand Files Nick Cave

Tinham perdido a crença em Deus sem saber porquê

Nasci num tempo em que a maioria dos jovens tinham perdido a crença em Deus, pela mesma razão que os seus maiores a tinham tido — sem saber porquê. E então, porque o espírito humano tende naturalmente para criticar porque sente, e não porque pensa, a maioria desses jovens escolheu a Humanidade para sucedâneo de Deus. Pertenço, porém, àquela espécie de homens que estão sempre na margem daquilo a que pertencem, nem vêem só a multidão de que são, senão também os grandes espaços que há ao lado. Por isso nem abandonei Deus tão amplamente como eles, nem aceitei nunca a Humanidade. Considerei que Deus, sendo improvável, poderia ser, podendo pois dever ser adorado; mas que a Humanidade, sendo uma mera ideia biológica, e não significando mais que a espécie animal humana, não era mais digna de adoração do que qualquer outra espécie animal. Este culto da Humanidade, com os seus ritos de Liberdade e Igualdade, pareceu-me sempre uma revivescência dos cultos antigos, em que animais eram como deuses,

Confiar a educação a um estranho

Northern kings generally entrusted their sons’ upbringing to a stranger, for they thought that so they would be treated with less indulgence than at home. Accordingly Helgi was fostered by Hagal, and under his care the young prince became so fearless that at the age of fifteen he ventured alone into the hall of Hunding, with whose race his family was at feud.  Norse Myths  Página 173 Jake Jackson  2014 dC  Editora: Flame Tree Publishing

A verdadeira catástrofe de Babel

Daí que haja uma perda verdadeiramente irreparável, uma diminuição dos possíveis humanos, quando uma língua morre. Com a sua morte, não é só uma memória de gerações única e vital - os tempos do passado ou os seus equivalentes -, não é só uma paisagem, realista ou mítica, ou um calendário que se apaga, mas também as suas configurações de um futuro concebível. Uma janela fecha-se sobre o nada. A extinção das línguas que hoje testemunhamos - todos os anos dúzias delas calam-se sem remédio - é precisamente homóloga da devastação da fauna e da flora, mas em termos ainda mais definitivos. As árvores podem ser plantadas de novo, o ADN das espécies animais pode, pelo menos em parte, ser conservado e talvez reativado. Uma língua morta continua morta ou sobrevive como relíquia pedagógica no jardim zoológico das universidades. O resultado é um empobrecimento drástico na ecologia do psiquismo humano. A verdadeira catástrofe de Babel não é a divisão das línguas: é a redução do discurso humano a mei

A multiplicidade de milhares de línguas mutuamente ininteligíveis não é uma maldição - 2

O espaço, que é uma construção social não menos do que neurofisiológica, é linguísticamente cartografado e inflectido. As línguas habitam-no diferentemente. Através da sua «cartografia» e da nomeação das coisas, as comunidades linguísticas em causa sublinham ou elidem contornos e traços variáveis. O espectro das distinções precisas entre diferentes tonalidades e texturas da neve nas línguas de esquimós, o rol das cores que diferenciam as pelagens dos cavalos no falar dos gaúchos argentinos, são dois exemplos paradigmáticos. Os dialetos da Grã-Bretanha produzem mais do que cem palavras e expressões que designam os esquerdinos. A equação entre a mão esquerda (sinistra) e o mal atravessa as culturas mediterrânicas. A antropologia estrutural ensinou-nos que os conceitos e as identificações que se referem às relações de parentesco são inelutavelmente linguísticos. Até noções tão fundamentais como parentesco ou incesto dependem das taxinomias, de uma codificação lexical e sintática inseparáv

Nós herdámos a destruição e os seus resultados

Quando nasceu a geração a que pertenço encontrou o mundo desprovido de apoios para quem tivesse cérebro, e ao mesmo tempo coração. O trabalho destrutivo das gerações anteriores fizera que o mundo, para o qual nascemos, não tivesse segurança que nos dar na ordem religiosa, esteio que nos dar na ordem moral, tranquilidade que nos dar na ordem política. Nascemos já em plena angústia metafísica, em plena angústia moral, em pleno desassossego político. Ébrias das fórmulas externas, dos meros processos da razão e da ciência, as gerações, que nos precederam, aluíram todos os fundamentos da fé cristã, porque a sua crítica bíblica, subindo de crítica dos textos a crítica mitológica, reduziu os evangelhos e a anterior hierografia dos judeus a um amontoado incerto de mitos, de legendas e de mera literatura; e a sua crítica científica gradualmente apontou os erros, as ingenuidades selvagens da "ciência" primitiva dos evangelhos; ao mesmo tempo, a liberdade de discussão, que pôs em praça

Sabiam ser sólidas entidades morais

Não foi preciso muito tempo para que todas as colinas escalvadas entre King City e San Ardo fossem divididas entre famílias miseráveis, espalhadas pelos montes, lutando furiosamente para arrancar a subsistência ao solo pedregoso. Essa gente partilha com os coiotes uma vida de desespero, na extremidade do mundo do vale. Tinham chegado sem um chavo, sem material, sem ferramentas, ignoravam as técnicas da agricultura a aplicar nesse país novo para eles. Pergunto a mim mesmo se eram divinamente estúpidos ou se viviam animados por uma fé imensa. Seja como for, uma aventura colectiva de tal importância não deve reproduzir-se todos os dias neste pobre globo. As famílias cresceram e multiplicaram-se. Possuíam uma ferramenta ou uma arma que já não se sabe utilizar em nossos dias. Talvez alguém ainda a consiga descobrir. Diz-se que essas pessoas obtinham de um Deus justo e bom a força para viver e que os outros problemas se resolviam por si. Mas eu creio que é porque tinham confiança em si própr

Do mal o menos, animou-se um pouco a conversa…

Infelizmente, o movimento instintivo derrubou um copo de vinho tinto por cima do aparelho de uma senhora de porte severo que se encontrava à minha direita e que, depois de soltar um grito agudo, lembrando o piar agoirento de algumas aves noturnas, começou a murmurar imprecações de teor algo insultuoso, enquanto procurava, desesperada, na carteira um lenço com que pudesse minorar os estragos provocados no pequeno engenho.  - Tem aqui o meu guardanapo - decidi mostrar-lhe a minha solicitude, a despeito dos lamentáveis impropérios que ciciava. - São coisas que acontecem quando menos se desejam… E de novo o Mendonça: - São coisas que não deviam acontecer, pois têm efeitos irreparáveis, sobretudo nesses modelos… Basta um pingo de suor, uma lágrima, um pouco de baba, para deixarem de funcionar! - Pois eu encomendei há dias um que pode levar-se para a banheira ou até para a piscina! - Elucidou o corcunda. - Ah, sim?! Mas que maravilha… e que prático! Era a voz da minha mulhe

Um jantar numa atmosfera nada agradável

Quanto ao jantar, consistiu numa refeição gastronomicamente correcta, mas devo dizer que decorreu numa atmosfera pouco ou nada agradável.  O silêncio devia-se ao facto perturbador de que quase todas aquelas pessoas tinham junto do respectivo prato um pequeno aparelho luminoso no qual deslizavam um dedo ou, no caso de uma senhora velhinha que devia ser avó do Mendonça, carregando um pauzinho preto, uma espécie de palito mais grosso e alongado. Percebi que se tratava de um objecto já em desuso, apropriado à idade da vetusta utente, cuja mão tremia enervantemente, sendo talvez por isso que lhe tinham fornecido o pauzinho, uma espécie de muleta electrónica. Desviei o olhar da macróbia numa louvável tentativa de iniciar qualquer conversação interessante, começando por um elogio à sopa de agriões, uma tradição muito portuguesa, mas ninguém me prestou atenção, pois verifiquei que estavam todos a ler e a escrever, mesmo enquanto levavam a colher à boca, uma série de frases curtas cuj

O sentido de humor do leninismo com a religião

Religião. Parece inadequado considerar esta matéria na rubrica «intervenções»: neste campo, as actividades de Estaline careciam de substância teológica. Desde o início, a linha bolchevique tinha sido de «ateísmo militante». À parte a imposição de pobreza e da opressão, «nenhum acto do governo de Lenin», crê Richard Pipes,    trouxe maior sofrimento à população geral, as chamadas «massas», do que a profanação das suas crenças religiosas, o encerramento dos seus lugares de culto e os maus tratos infligidos ao clero.  A par de qualquer outra reunião de duas ou mais pessoas, o culto organizado era «considerado prova cabal de intentos contra-revolucionários». O brutal ataque à igreja, em particular à Igreja Ortodoxa Russa (atrasada, corrupta e fatalmente comprometida pelas suas ligações à polícia czarista) talvez fosse politicamente compreensível, daí as pilhagens e linchamentos, a caça aos padres, os julgamentos sumários, as execuções. Mas foi intenção extraordinária do regime aniquilar ta

A multiplicidade de milhares de línguas mutuamente ininteligíveis não é uma maldição - 1

Sustentei em After Babe l (1975) que a multiplicidade de milhares de línguas mutuamente ininteligíveis outrora faladas nesta Terra - e das quais muitas desapareceram hoje, ou se encontram em vias de extinção - não é, como as mitologias e alegorias do desastre entendem, uma maldição. São, pelo contrário, uma bênção de um motivo de regozijo. Cada uma, entre todas as línguas, é uma janela que abre sobre ser, sobre a criação. Uma janela como nenhuma outra. Não há línguas «menores», por reduzido que seja o seu quadro demográfico ou o seu meio. Certas línguas faladas no Deserto do Calahari traçam ramificações do conjuntivo mais numerosas e mais sutis do que as que encontramos em Aristóteles. As gramáticas hopi possuem cambiantes temporais e de movimento que se conjugam melhor com a física da relatividade e da indecidibilidade do que os nossos próprios recursos indo-europeus e anglo-saxónicos. Graças às raízes e ao desenvolvimento culturais e psicológicos incorporados no seu interior - raízes

Uma falta de curiosidade selectiva, um quebra-cabeças iniciado por auto-hipnose

Wilson não se deixou seduzir por Estaline por muito tempo, mas nunca renegou a pureza essencial de Outubro. Por isso desempenhou o seu papel na grande degradação intelectual. É frequente aduzir-se certas condições históricas para explicar esta degradação. São elas: a ferida geracional deixada pela Primeira Grande Guerra (guerra convincentemente apontada como «imperialista», portanto, capitalista), a Grande Depressão de 1929-34, o advento do fascismo e depois do nazismo (e o envolvimento de ambos na Guerra Civil de Espanha) e, mais tarde, a força moral das baixas russas na Segunda Guerra Mundial. Mas o facto é que, a despeito «das provas cada vez mais volumosas e insofismáveis» do contrário (como escreveu o meu pai nos meados dos anos cinquenta), a URSS continuou a ser considerada fundamentalmente progressista e benigna; e o erro resistiu até meados dos anos setenta. O que era isto? Do nosso ponto de vista actual, parece o contágio de uma falta de curiosidade selectiva, um quebra-cabe

O alimento dos corvos: Fé - 3

Como é que Deus alimenta as aves? A resposta é que ele não as alimenta! Ou pelo menos de uma forma directa. Não devemos imaginar Deus a alimentar as aves, como alimentamos os nossos animais de estimação em casa, oferecendo-lhes comida dada à mão ou num prato. Não! Jesus foi um atento observador da natureza. Ele sabia que as aves se alimentam sozinhas. Umas são insectívoras. Outras comem bagas, sementes ou fruta. Umas são carnívoras, outras são piscívoras, enquanto ainda outras são necrófagas, predadoras ou piratas. Umas sugam o néctar das flores; outras alimentam-se de lagartas e até mesmo de caracóis! Então que quis Jesus dizer? Ele quis dizer que Deus alimenta as aves indirectamente. Eu fornece-lhes os meios com os quais se alimentam. Mas têm de procurar a sua comida. Como cantou o salmista a Deus: «Todos esperam de ti que lhe dês comida a seu tempo. És tu que lhes dás a comida que eles recolhem...» Numa passagem paralela, Lucas, no seu evangelho regista, em que Jesus disse, não qu

O alimento dos corvos: Fé - 2

Primeiro, Jesus não estava a proibir a prudência e a previsão. A tradução da conhecida Versão Autorizada «não pensem no amanhã» é profundamente enganadora. O que Ele disse foi: «não tenham pensamentos ansiosos» ou (NIV) «não fiquem preocupados». Claro que devemos pensar no futuro. A própria Bíblia nos exorta a fazê-lo. A razão de devermos imitar o comportamento das formigas é o facto de elas armazenarem provisões no Verão. De facto, algumas aves que fazem o mesmo. Os pica-paus da bolota, da Califórnia, gostam de armazenar bolotas nos orifícios de árvores ou de postes de telefone e os picanços aprovisionam as suas despensas empalando insetos em espinhos. A instrução de Paulo a Timóteo é similar a esta: «Quem não se preocupa com os seus familiares e mais ainda com os da sua casa, renega a sua fé e é pior do que um descrente». Eis uma garantia bíblica para um seguro de vida ou para um meio equivalente de poupar para o futuro. Jesus é contra a preocupação não contra a prudência. A Fé em De